24 de jan. de 2007

O Olhar, o luar e a fadiga

Sim! A noite, hoje, está maravilhosa. Na verdade ela sempre é linda, ocorre que quase nunca a observamos. Muitas vezes, no ônibus, prendemos a nossa atenção com os fatos cotidianos, dignos de uma população periférica que, ao voltar para casa do trabalho, com uma insuportável fadiga, deixam de olhar o lado de fora do ônibus e sentir a brisa da noite que sopra. A nossa atenção se prende àquela juventude desvairada, que sem juízo algum, tira o nosso sossego, nosso relativo sossego em meio aos barulhos desse ônibus desajustado e velho. Essa juventude desvairada me impressiona pela energia que carrega e pelo desprendimento que tem ao que os outros vão pensar daquilo que é e está sendo nessa viajem trêmula, ainda que esteja sendo, cronicamente, a geração inviável de um amanhã. Ou então nos concentramos na conversa do cobrador com o motorista que, aparentemente, falam de nós, os seus passageiros, como se fossemos carga, mas nada fazemos, nem questionamos, nem isso. Impressionamo-nos com os bêbados, os loucos, as putas e até os pastores, seguidores do senhor e em último caso, senão for tão raramente, com o rosto apagado daquele trabalhador, aquele de camisa azul royal, sabe aquele que leva, todos os dias, no ombro uma mochila preta? Onde certamente carrega a sua marmita. Pouco nos impressionamos com estes cidadãos.
Sim! Esta noite está linda, pena que para pessoas assim, como este que carrega a marmita, ela represente nada mais que o fim de mais uma batalha. Ele aguarda ansioso o seu ponto, para descer, ir para casa e descansar, se recompor sabendo que amanhã outro leão ele terá que vencer para conseguir continuar existindo e garantindo a existência de sua senhora, seus filhos, seus sonhos...
Tão linda esta noite para o fim de um dia sofrido, ensolarado, insuportavelmente quente para quem trabalha ao sol, com aquela camisa quente, coletando o lixo podre de toda a cidade. Certamente não haverá ele muita imaginação e nem mesmo forças para parar a observar a noite, as noites, os dias, as luzes. Pouco o observamos, não o sentimos presente em nosso meio, chegamos ao ponto de negar a sua existência. Mas também são tantos. Pedro, Maria, José, Tereza, João, Valquiria, Joaquim, Clarisse, Amarildo, Adriana, Paulo, Camila, Carlos, Sofia, Frederico, Fabiana, Josias, Joice, Armando, Cida, Roberto, Anita, Juarez, Valdete, Januário, Rosa, Amilton, Jurema, Valdemar, Claudete, Mário, Juraci, Helena, Nivaldo, Carmem, Severino, Edna, Alvarino, Dona Cândida, sêo Osvaldo, Arnaldo, Antonia, Ernesto, Silmara, Ricardo, Silvana, Moises, Rogério, Clara, Francisco... são tantos! Como poderíamos parar pra observar tantas pessoas assim? Tantos rostos tristes, ficamos indiferentes a eles e acabamos por observar os bêbados, os loucos, as putas e até os pastores, seguidores do senhor.
É divertido rir da desgraça alheia, faz-nos bem, faz-nos sentir não tão desgraçados quanto somos. Tira-nos, ou pelo menos faz pensar que saímos dessa vida desgraçadamente morrida. Tão triste somos nós, sem luz, sem magia, sem sentido... a ponto de se impressionar entre o luar da noite serena e a fadiga do trabalhador com a desgraçada vergonha daquele que faz da bebida, das rés doses de pinga, a válvula de escape para tão somente continuar existindo sem se lembrar que amanhã um novo dia será, será sem emprego, sem amigo, sem cultura, sem família, sem poesia. Se impressionar, com a vergonha, que temos das desavergonhadas, que fazem de seus corpos – não porque querem, mas porque precisam – um instrumento de trabalho, de sobrevivência, na verdade. De nos impressionar com os alcoólicos de Deus, que fazem da fé um balcão de negócios e usam da inspiração divina, numa versão comediada, para converter seus fiéis aos dogmas, à doutrina – quando há – ao dizimo, às verdades acabadas.
Quem vê tudo não observa nada, quem observa algo pouco vê de tudo e quem sente algo muito crê. Creio que o olhar, com ou sem luar, para a fadiga de Pedro, Maria, José, Tereza, João, Valquiria, Joaquim, Clarisse, Amarildo, Adriana, Paulo, Camila, Carlos, Sofia, Frederico, Fabiana, Josias, Joice, Armando, Cida, Roberto, Anita, Juarez, Valdete, Januário, Rosa, Amilton, Jurema, Valdemar, Claudete, Mário, Juraci, Helena, Nivaldo, Carmem, Severino, Edna, Alvarino, Dona Cândida, sêo Osvaldo, Arnaldo, Antonia, Ernesto, Silmara, Ricardo, Silvana, Moises, Rogério, Clara, Francisco e tantos outros, com todo sentimento, poça nos inspirar a sonhar com a nova terra, onde os homens e mulheres sejam livres.

Campinas, 10 de janeiro de 2007
Foto: João Zinclar
Juazeiro Bahia